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JULGAMENTO DE MÉRITO CONFORME O ESTADO INICIAL DO PROCESSO

   

    Análise do art. 285 – A do CPC (Lei n. 11.277, de 7 de fevereiro de 2006)


    1. Escopos do novo dispositivo (art. 285 – A) que institui o julgamento de mérito conforme o estado inicial do processo.

    O novo dispositivo introduzido no Código através da Lei 11.277, de 7 de fevereiro de 2006[1], é de autoria do Poder Executivo (PL. 4.728/04; Em n. 00186 – MJ), e faz coro com as diversas inovações atinentes às diretrizes reformistas do sistema instrumental brasileiro que, entre outros escopos, objetivam conferir mais celeridade e racionalidade na prestação da tutela jurisdicional, notadamente para atender às hipóteses de demandas repetitivas.

   Nesse sentido, extrai-se da exposição de motivos da referida Lei que a nova proposição busca “... criar mecanismo que permite ao juiz, nos casos de processos repetitivos, em que a matéria controvertida for unicamente de direito, e no juízo já houver sentença de total improcedência, dispensar a citação e proferir decisão reproduzindo à anteriormente prolatada”.

    2. Da constitucionalidade da lei nova

    O dispositivo em voga recebeu voto (vencido) de rejeição no Congresso Nacional sob o fundamento de injuridicidade e inconstitucionalidade e, no final de março do corrente ano [2006], a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou perante o Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade (n. 3695, rel. min. Cezar Peluso) pelos motivos que acabamos de apontar. Em defesa da tese de inconstitucionalidade da lei 11.277/06, diz OAB que o novo dispositivo (art. 285-A) “...institui uma sentença vinculante, impeditiva do curso do processo em primeiro grau...”, violando os princípios da isonomia , da segurança jurídica, do direito de ação, do contraditório e do devido processo legal.[2]

    Em que pesem os judiciosos argumentos em sentido contrário, entendemos que a novel lei não viola qualquer dispositivo ou princípio constitucional, assim como não colide com as normas infraconstitucionais ou com o sistema instrumental.

    Em primeiro lugar, não há que se falar em supressão de instância ou de óbice ao acesso à jurisdição, porquanto o interessado demanda em juízo, articula os fatos e fundamentos jurídicos e formula o seu pedido ao Estado-juiz. O que ocorrerá é, dependendo do caso, a rejeição liminar do pedido do autor, através da prolação de sentença de total improcedência.

    Não existe também qualquer afronta ao contraditório ou ampla defesa, se não vejamos: ao réu, nenhum prejuízo se verifica pela ausência de citação e formação da relação jurídico-processual, visto que o autor sucumbe de plano, obtendo o sujeito passivo, por conseguinte, ganho de causa.

    Ademais, com o julgamento imediato em desfavor do postulante, as despesas processuais serão mínimas, porquanto adstritas ao depósito das custas iniciais, donde exsurge não só a economia de tempo (celeridade processual), mas também financeira, pois o autor não arcará sequer com a verba honorária do vencedor, em decorrência da não-formação do contraditório.

    O duplo grau de jurisdição também é preservado, segundo se infere das regras insculpidas nos §§ 1° e 2° do art. 285-A.

    3. Requisitos para o julgamento de mérito conforme o estado inicial do processo

    Para que o julgamento de mérito se verifique de plano, ou seja, initio litis, são imprescindíveis que se façam presentes os seguintes requisitos, sob pena de nulidade absoluta da sentença: a) lide unicamente de direito; b) precedentes do  próprio juízo (não necessariamente do juiz sentenciante) em casos idênticos; c) julgamentos anteriores pela improcedência total do pedido.

    Note-se que o dispositivo em questão não dá respaldo às hipóteses de precedentes semelhantes ou a precedentes idênticos de procedência total do pedido. Na verdade se já existirem precedentes favoráveis ao pleito do autor, formar-se-á o contraditório e, concluída a fase postulatória, deverá o magistrado resolver a lide conforme o estado do processo, com fulcro no art. 330, I, do CPC. O que não se admite, sob pena de nulidade da sentença, é que o juiz dê ganho de causa ao autor, liminarmente, sem oportunizar ao réu o contraditório e ampla defesa.

    O legislador fez uso da expressão “outros casos idênticos” para designar a existência de precedentes jurisprudenciais daquele mesmo juízo. Para que se considere jurisprudência do juízo, os casos haverão de ser idênticos, as lides unicamente de direito, as sentenças anteriores sejam todas no mesmo sentido: de rejeitar integralmente o pedido do autor, e, reiteradas, no mínimo, com três repetições idênticas.

    Nada obsta que, antes de sentenciar com fulcro no art. 285-A, detemine que o autor emende ou complete a inicial, no prazo de dez dias, ao verificar que a peça inaugural não preenche os requisitos dos art. 282 e 283, ou apresenta defeitos e irregularidades, o julgador estará, então, apto a resolver o mérito, rejeitando de plano o pedido formulado pelo autor (art. 269, I, CPC).  

    4. Cumulação de ações

    Poderá ocorrer também que o autor cumule pretensões, isto é, que formule pedidos cumulados, sendo um deles totalmente improcedente, conforme decisões reiteradas daquele juízo, fundadas unicamente em questões de direito.

    Nesse caso, a demandada cumulada que se enquadrar nos moldes do art. 285-A, poderá ser rejeitada, de plano, prosseguindo-se no processo com referência ao outro pedido. Se houver impugnação, haverá de ser por intermédio de agravo e não através de apelação, sendo pressuposto para a incidência do artigo em comento que se verifique a resolução total do mérito, com a improcedência de todos os pedidos ou do único pedido formulado (v. item n. 1.9, infra).    

    5. Discricionariedade judicial

    Diz o artigo em tela que o juiz poderá dispensar a formação do contraditório, sem sequer ordenar a citação do réu, proferindo imediatamente sentença de total improcedência do pedido. Indaga-se: trata-se de um poder-dever, de mera faculdade, ou de discricionariedade conferida ao Estado-juiz?

    Em que pese tratar-se de questões idênticas repetitivas, entendemos que a norma confere ao julgador absoluta discricionariedade para a resolução imediata do conflito, formação do contraditório através da citação do réu, seguindo-se a resposta e fases processuais seguintes, se for o caso, sem perder de vista que ainda poderá ocorrer o julgamento antecipado da lide.

   Significa dizer que o magistrado não está obrigado a decidir, de plano, pela improcedência do pedido, mesmo em se tratando de questões idênticas repisadas naquele mesmo juízo, e, por conseguinte; não caberá qualquer tipo de recurso contra o ato judicial de recebimento da inicial ordenando a citação do réu. Aliás, o simples comando determinador da citação é mero despacho de expediente, portanto, irrecorrível (art. 504, CPC).

    Recebida a inicial e processado o feito, ao oferecer resposta, se o caso em concreto enquadrar-se na moldura do art. 285-A, é de bom alvitre que o réu traga à colação, entre outros documentos que entender necessários a sua defesa, os procedentes daquele juízo que lhe são favoráveis, arrematando com o pedido de julgamento antecipado da lide, com base no art. 330, I, do CPC.

    6. Reconhecimento de prescrição ou decadência

    Se o juiz verificar, de plano, a incidência de prescrição[3] ou decadência, havendo ou não precedentes reiterados, haverá de pronunciá-las de ofício, resolvendo o mérito do conflito, com fulcro no art. 219, § 5° c/c art. 269, IV, ambos do CPC. 

    7. Ação rescisória, mandado de segurança e habeas corpus

   Em se tratando de ação rescisória, mandado de segurança ou habeas corpus, afigura-se-nos perfeitamente possível a aplicação do art. 285-A em segundo grau de jurisdição ou instâncias superiores.

    Assim, contatando o ministro ou desembargador relator que a hipótese vertente reproduz julgamentos unânimes e reiterados de improcedência do pedido daquela mesma turma ou câmara, a decisão de plano poderá ser proferida.

    Outro não pode ser o entendimento, tendo-se sempre presente que o código de Processo Civil aparece como macrossistema instrumental, aplicável subsidiariamente aos demais microssistemas se e quando a norma específica for lacunosa, sem violar qualquer de seus princípios orientadores. 

    8. Requisitos da sentença

    A sentença que rejeita integralmente o pedido do autor, de plano, resolvendo o mérito, com fulcro no art. 269, I do CPC, haverá de observar os requisitos definidos no art. 458 do mesmo Diploma Legal.

   Diz a parte final do art. 285-A que o juiz reproduzirá o teor da sentença “anteriormente prolatada”. Há de se compreender da dicção do dispositivo analisando que a reprodução respeita aos fundamentos jurídicos sejam os mesmos, precisamente idênticos, motivos pelo qual o juiz pode limitar-se a reproduzir algum dos julgados precedentes.

   Parece-nos crucial que o julgador aponte os precedentes do juízo, mencionando-os com precisão fazendo, para tanto, referência aos respectivos números dos atos dos processos decididos naquele mesmo sentido, acrescido da “reprodução” de um deles, adotado como razão de decidir.

    Essa referência numérica aos precedentes serve como norte inibidor de recursos, além de permitir ao autor constatar com a prescisão se os precedentes acerca dos quais se funda o indeferimento do seu pedido são realmente aplicáveis à hipótese vertente.

    Sem sentenças desse naipe, é fundamental a referência aos precedentes jurisprudencias do juízo, assim compreendida como indicação específica dos julgados nos quais se ancora a decisão de indeferimento da pretensão do autor, tornando-se requisito essencial do próprio ato. Há de se ter presente que, sem os precedentes, não há possibilidade jurídica para a prolação de sentença de improcedência do pedido initio litis.

    9. Recursos

    Descontente o autor com o julgamento que, de plano, rejeita o seu pedido, poderá apelar objetivando reverter esse quadro, de maneira a ver o processo seguir o seu curso normal.

    Nessa oportunidade poderá o magistrado retratar-se, no prazo de cinco dias, sem a ouvida da parte contrária, através de decisão fundamentada, lançando as razões que o levaram a não manter a sentença impugnada, terminando por ordem o prosseguimento do processo (art. 285-A, §1°)[4].

    Diversamente, caso seja mantida a sentença (também por decisão fundamentada, mesmo que concisa), será ordenada a citação do sujeito passivo para, no prazo legal, responder ao recurso de apelação (§ 2°).

    Em que pese o novo dispositivo aludir apenas ao recurso de apelação, hipóteses poderão surgir em que a lide não seja extinta por completo, mas tão-somente uma parcela do conflito, tal como ocorre com a cumulação de ações (cúmulo objetivo).

    Em situações como essas, conforme já dissemos alhures, nada obsta que o juiz rejeite integralmente um dos pedidos formulados, nos termos do disposto no caput do art. 285-A do CPC, ordenando o prosseguimento do feito em relação ao pedido ou pedidos cumulativos restantes. Dessa decisão de extinção parcial do processo, caberá recurso de agravo por instrumento (inexistindo interesse na modalidade retida), prosseguindo-se nos moldes preconizados pelos §§ 1° e 2° do referido artigo.


[1] Assim dispõe o novo artigo, in verbis: “Art. 285-ª Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida a sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.

§ 1° Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.

§ 2° Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder o recurso.”

[2] Lamentável a insurgência da OAB contra a nova lei, que traz em seu bojo importante técnica voltada à agilização do processo e, mais do que isto, viabiliza a pronta prestação da tutela jurisdicional, poupando o autor de verdadeira via-crúcis para, ao final, ver o seu pleito sucumbir, quando, de plano, o indeferimento do pedido já era certo. Oxalá não seja acolhido o requerimento de inconstitucionalidade da Lei 11.277/06. Ao menos, até o presente momento, a liminar não foi concedida, tendo sido pedido informações em 11/4/06 ao Congresso Nacional. Bom sinal!

[3] Cf. nova redação conferida ao art. 219, §5°, do CPC, através da Lei 11.280, de 16/2/06.

[4] Constata-se atecnia do legislador ao assinalar na parte final do § 1°, do art. 285-A, que o juiz determinará o “prosseguimento da ação”, pois a demanda, na qualidade de efetivo exercício de um direito subjetivo público e abstrato, voltada à obtenção da tutela jurisdicional do Estado para satisfação das pretensões do autor, já foi deflagrada, dando ensejo à formação do instrumento de realização desse mesmo direito, que nada mais é do que o processo. De conseqüência, o “prosseguimento” é do processo, que se desenvolve em etapas ou fases procedimentais.