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FUNDAMENTOS, ABRANGÊNCIA E EFEITOS DA SENTENÇA QUE RECONHECE A EXCEÇÃO DE DOMÍNIO NA LIDE POSSESSÓRIA.

I – Prefácio

1. Desde o surgimento da exceptio dominii em nosso Direito (pelo assento de 16 de fevereiro de 1786, para interpretação do alvará de 09 de novembro de 1774, relativo à transmissão da posse aos herdeiros, o qual preconizou não se dever “seguir o visível absurdo de se julgar nos interditos recuperatórios e nos outros casos ocorrentes no foro, a posse àquele mesmo a que pelo processo e evidência notória dos autos, se depreende não lhe dever ser julgada a propriedade”) estabeleceu-se verdadeira celeuma em torno de sua admissibilidade ou não (de um lado, Lobão e Teixeira de Freitas e, de outro Ribas e Lafayette).

Em face de ser exceptio proprietatis verdadeira intromissão à posse, pervertendo a pureza dos interditos, tende a ser retirada de nosso Diploma Substantivo Civil, conforme se infere do art. 1.249, § 2°. Do Projeto de Código Civil (Projeto de Lei n°. 634/75).

Como bem acentua o mestre Pontes de Miranda (in Tratado de Direito Privada, vol. 10, pág. 316,1955), “... A oposição da exceptio dominii no juízo dos interditos repugnaria aos juristas romanos”. (...) “tem-se argüido que a exceção de domínio tiraria o caráter possessório da ação. Todas essas considerações são de lege ferenda. Em direito lato, temos exceptio dominii, se evidente a prova contrária à pretensão do possuidor que se diz proprietário (art. 505, 2°. parte, verbo ‘evidentemente’). Grave foi que o autor do Projeto, ao seu tempo, tivesse acreditando em que a admissão da exceptio dominii é conseqüência necessária da teoria de R. Von Jhering: não no é. Lamenta-se que a exceção de domínio haja entrado em forma de negação: não se disse que há de julgar com entrega da posse a favor de quem tem o domínio, o que inseriria no processo possessório a restituição, pela procedência da exceção; mas que ‘não se deve julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio’. Portanto: deve ser julgada a posse a favor do que é possuidor e prova a propriedade; deve ser julgada a posse a favor de quem pode ser o dono; não deve ser julgada a posse a favor daquele que evidentemente não é dono. Claro que se está a falar de posse de dono.”

Portanto, deve-se ressaltar que o princípio que norteia a matéria é o da inoponibilidade de defesa fundada na propriedade. A posse é fato; o domínio é direito. Assim, “não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio” (art. 505, 1°. Parte, CC).

Convém aqui esclarecer questão ainda um tanto quanto obscura, na doutrina e na jurisprudência, qual seja, a natureza jurídica da posse. Observa-se que os doutrinadores e as Cortes de Justiça de nosso País já se posicionaram no sentido de não ser a posse um instituto de direito pessoal, mas sim real. Porém não reside aqui o cerne do enleio, e sim na distinção entre a posse (no âmbito do direito substantivo) e as ações possessórias (Direito Adjetivo).

A posse por si só não é um direito, mas tão-somente um fato, inexistindo a princípio no mundo jurídico, razão por que não pode ser rotulada de “direito real”, sendo, sim, “situação meramente fáctica” (acolhida pelo legislador quando da adoção da teoria de Von Jhering, em nosso Código Civil).

Por outro lado, quando se analisa a posse sob a ótica do Direito Adjetivo, ela se equipara por ficção jurídica aos direitos reais, passando a ser considerada para efeitos processuais como uma ação real, conforme se depreende dos artigos 10 e 95, ambos do Código Buzaid.

Ademais, o direito real caracteriza-se por ser oponível erga omnes e por conferir ao seu titular o direito de seqüela, não estando a posse inserida nesta categoria.

Por estes motivos, não é a posse um direito real, como proclamada, mas situação de fato, sendo considerada, unicamente para efeitos processuais, ação de natureza real.

2. Inobstante a polêmica ainda reinante, não se pode dizer que a Lei n° 6.820, de 16 de setembro de 1980, tenha revogado o art. 505 do Código Civil (como pretende o Egrégio Tribunal da Alçada do Estado de Minas Gerais, in Ap. Cív. n°. 20.153/A, da comarca de Juiz de Fora , de 23/03/82), pelos motivos já expostos em meu Artigo (publicado na ‘Jurisprudência Catarinense’, vol. 40, págs.31/34, e na Jurisprudência Brasileira, vol. 79, págs. 15/17, ed. Juruá e citado por Theotônio Negrão, in Cód. De Proc. Civ. E Leg. Proc. Em vigor  - pág.282) e nos julgados da Corte de Justiça deste Estado (JC, vol. 42/129 –133, Rel. Des. Ernani Palma Ribeiro e Ap. Cív. n° 19.891, de Turvo, Rel. Des. João Martins).

3. A exceção de domínio está prevista na 2°. Parte do art. 505 do CC: “não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”. Em que pese a exceptio dominii ter sido infelizmente regida na forma afirmativa negativa, corrigida pela então 2° parte do art. 923 do CPC (já revogada pela Lei n° 6.820 de 1980), perdura ainda a Súmula 487do Pretório Excelso, que acolhe na forma positiva esta exceção, in verbis: “será deferida a posse a quem evidentemente tiver o domínio, se com base neste for discutida”.

A doutrina, em harmonia com a jurisprudência, vem admitindo remansosamente a ocorrência da exceção da propriedade apenas em duas hipóteses: a) quando os litigantes pretendem a posse em razão do domínio; b) em sendo a posse de ambos duvidosa. Decidirá então o juiz em favor daquele a quem pertencer o domínio.

 

II – Fundamentos da Sentença

Como muito bem anota Pontes de Miranda (op. Cit., pág.346) “...Em termos rigorosamente científicos, a alegação de domínio não é exceção, mas simples alegação para peso, a mais em caso de prova dúbia. O art. 505, 2° parte, apenas é regra jurídica sobre prova. Na dúvida pesa mais a prova do domínio como prova de posse, se se prova que evidentemente pertence à outra parte o domínio. Por isso mesmo, deve o juiz abster-se de aplicar o art. 505, 2°. Parte, se não há pressupostos necessários”.

A sentença, verdadeiro silogismo que é, premissas (fundamentação) para atingir a conclusão 9o dispositivo), motivo pelo qual, para que se julgue a posse favoravelmente a uma das partes, alegada a exceptio dominii, é indispensável que o magistrado adentre a análise dos títulos trazidos aos autos para a prova do articulado para que então se confira a posse definitivamente a quem evidentemente seja o proprietário. Deixa-se de lado o mundo fáctico e incursiona-se pelo mundo jurídico da propriedade, com notória limitação dos meios probantes, pois somente servirá como válido o título hábil a transferir a propriedade – o domínio evidente.

Para que se chegue a uma conclusão de cunho possessório, mister se faz analisar os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, versando o estudo da matéria sobre a validade dos títulos de propriedade em que se fundamenta a posse, estabelecendo-se as premissas necessárias à parte dispositiva.

Os articulados na fundamentação (in casu a análise da nulidade dos títulos para conclusão do domínio evidente) não fazem res judicata, “... ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”, bem como a “... apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo" (art. 469, incs. I e II), exceto a hipótese do art. 470 do Código Buzaid. 

            Nestas ações de natureza puramente possessória, inobstante a alegação de domínio, o possessório não se converte em petitório, pois tudo gira em torno da prova de verificação de evidência do domínio, mas sem pretensão de declaração de anulação de qualquer deles, para não extrapolar o instituto da posse e de suas ações. Como anota Tito Fulgêncio (in Da posse e das Ações Possessórias, vol. 2, pág.19, 1980), fazendo alusão ao acórdão do saudoso Orozimbo Nonato: “...o exame do domínio não é vedado nessa hipótese nem o é quando se torna indispensável à verificação do caráter da posse”.

         Não há dúvida de que o juiz deva perquirir a índole da posse com fulcro no domínio, motivo pelo qual lhe é permitido examinar os títulos apresentados, não para declarar a nulidade de alguns deles, mas sim para julgar a posse em favor de quem é o verdadeiro proprietário. Outra não é a lição de J. M. Carvalho Santos (in cód. Civ. Bras. Interpretado, pág. 159, vol. VII, 1979): “Como tal escopo, lhe será lícito examinar os títulos produzidos, não para decidir sobre o direito, mas para colorare, como dizem os práticos, a posse: vale dizer, para conhecer da mesma e deduzir se ela se ajusta ao espírito da lei, se é ou não manutenível ou reintegrável” (grifei). Ora, se a inclusão da excepti dominii, no Código Civil já é verdadeira excrescência e palco de discórdia entre os doutos juristas, não se pode ir além do que já não é regra, pois, segundo a hermenêutica, as exceções sempre devem ser interpretadas restritivamente, para admitir-se a declaração de validade ou invalidade de títulos dominiais, acostados nas ações interditais, sob pena de atingir-se um desvirtuamento ainda maior do sistema de defesas à posse – donde Orlando Gomes (in Direitos Reais, pág. 79,1983) faz a seguinte indagação: “... como admitir-se, pois, que numa ação possessória, de rito especial e finalidade limitada, se possa reconhecer com segurança que o possuidor não tem domínio porque este pertence evidentemente a outro?”.

Como a posse nada tem com o ius possidendi (direito de possuir), examinará o juiz os títulos apresentados para concluir sobre a natureza, extensão e eficácia da posse dos litigantes (v. anotação do Projeto argentino, art. 1.433, citado por Clóvis Bevilácqua, in Direito das Coisas, vol. I, pág. 74, 5ª ed.).

         Comungando do ponto de vista aqui esposado, preleciona o prof. W. de Barros monteiro (in Curso de Direito Civil, Direito das Coisas, pág. 60, 1979) que “... a indagação dos títulos terá cabimento se os litigantes disputam a posse na qualidade de proprietários, ou então, na hipótese em que seja ela conflitante. Em tal caso a apreciação dos títulos se faz non tam ad annullandum petitorium quam ad colorandum et corroborandum possessorium, isto é, com o fito de melhor caracterizar a posse. Como diz Boucart, pode o juiz consultá-los;porém não deve fazê-lo senão na medida do possessório, uma vez estabelecido o fato da posse os títulos tornam-se insignificantes, seja qual for sua relevância ou importância no juízo petitório”.

Como já decidiu sabiamente o Tribunal de Justiça de São Paulo, “A matéria de domínio, na possessória, pode ser apreciada unicamente para que não se julgue a posse em favor de quem evidentemente não seja proprietário”. E mais: ”Inegavelmente, o juiz do possessório pode conhecer dos títulos relativos ao direito exercitado, quando se tornar necessária a qualificação ou interpretação da posse” (citações de Guido Arzua, in Posse – O Direito  O Processo, págs. 95 e 96, 1978).

 

III – ABRANGÊNCIA E EFEITOS DA SENTENÇA

O acolhimento da exceção de domínio confere a manutenção ou a reintegração de posse (inaplicável, pois, no interdito proibitório, porque nele não se julga a posse – RT – 480 – 183), não indo além do que formulado na exordial, pois, como já vimos, o juiz examina os títulos “... não para resolver a quem este pertence, numa ação possessória, mas exclusivamente para descobrir elementos que corroboram a posse, se conjugada a um dos títulos do domínio” (Pontes, op. Cit., pág. 322).

No feito em que se alega a exceptio proprietatis, restringi-se a eficácia da coisa julgada material tão-somente para dizer quem é legítimo possuidor com base em título de domínio (evidente). Como ensina o festejado Pontes (op. cit., pág.339), “nenhuma eficácia tem de decisão desfavorável à nulidade ou anulabilidade do título, porque o processo é impróprio para essa discussão, e talvez não se haja argüido invalidade; nem decisão desfavorável à ineficácia. A decisão, na exceção de domínio, apenas declara que há relação de propriedade, e o proprietário, acusado de espoliador, tomou posse do que é seu, enquanto não se prova que o título é nulo ou ineficaz, ou enquanto não se lhe decreta a anulação”. “... A eficácia da decisão sobre o direito do réu não é a de sentença de cognição completa. Cingi-se à defesa na ação possessória; não tem, pois, força de coisa julgada material, nem carga de eficácia suficiente para coisa julgada material”.

Por conseguinte, não pode o magistrado, após fundamentar sua decisão no sentido de que um dos títulos não é válido, além de julgar procedente ou improcedente o pedido possessório, declarar a nulidade de um deles, sob pena de prolação de decisum ultra petita.

 

IV – COGNIÇÃO PARA NULIDADE DE TÍTULOS – CUMULAÇÃO DE PEDIDOS E DECLARAÇÃO INCIDENTAL

Através de ação autônoma de declaração, mais precisamente ação anulatória de ato jurídico (art. 4°. Do CPC), pode discutir-se a validade ou não dos títulos de propriedade.

Mas, no âmbito das possessórias (com procedimento não especial), é admissível a anulação de algum dos títulos, desde que o autor cumule ao pedido de reintegração ou manutenção de posse a anulação de aro jurídico, ou ainda, através de declaratória incidental. Analisemos então as duas hipóteses: a) A cumulação de pedidos não se restringe aos casos do art. 921 do CPC. Porém, se o autor pretender imprimir ao feito procedimento especial, deverá ficar adstrito, no seu pedido (cumulação), às hipóteses do art. 921. Não obstante, outros pedidos poderão ser cumulados ao processo possessório, além daqueles contidos no aludido artigo, desde que preenchidos os requisitos do art. 292 e seus parágrafos primeiro e segundo, do Cód. De Proc. Civil, quando então aplicar-se-á o rito ordinário (neste sentido: Adroaldo Furtado Fabrício, in Comentários ao CPC, vol. VIII, Tomo III, págs. 486 e 492). A respeito já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de janeiro: ”... se os pedidos forem compatíveis entre si, competente para deles conhecer o mesmo juízo, e adequado para todo o tipo de procedimento, lícita é a cumulação, devendo o juiz a quo processá-los e julgá-los como entender de direito” (Jurisprudência Brasileira, vol. 60/146).

Por estas razões, inexiste qualquer óbice à cumulação de pedido possessório ao de anulação de título, quando então o juiz, além de conhecer do possessório, poderá, através de cognição mais profunda e detalhada, averiguar e declarar a nulidade dos documentos.

b) A declaratória incidental também é possível nos termos do art. 5°. c/c o 325do CPC, acentuando este último que: “Contestando o réu o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo de dez (10) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da inexistência do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide (art. 5°).”

Baseando-se a contestação no art. 505, 2° parte, do CC, e sendo caso de admissibilidade de aplicação cabal da exceptio dominii, poderá o autor requerer que declare o juiz qual o título acoimado de nulidade, procedendo-se então a um estudo referente á matéria articulada.

Assim serão, na verdade, duas ações embutidas numa só, decidindo o magistrado ambas as questões no mesmo ato, qual seja, a sentença, sendo a declaratória prejudicial do feito principal, razão por que deve ser analisada ab initio.

Outro não é o ensinamento do insigne Desembargador e Professor Athos Gusmão Carneiro (in AJURIS, vol. 27, págs.54/55, artigo intitulado “Notas sobre a Ação Declaratória Incidental”): “Após transcorrido o prazo par a ‘responder’ ao pedido declaratório incidental, prossegue normalmente a demanda em procedimento ordinário, com saneamento, audiência e instruções comuns (sinultaneus processus), e a mesma sentença julgará o pedido principal e o de declaração incidente. Assim temos duas ações, duas relações jurídico-processuais, e um só processo.”

No magistério de Agrícola Barbi: ‘Tudo isso leva a concluir que o julgamento da ação principal e da declaração incidente deve ser feito sempre simultaneamente pelo Juiz da instância inferior’ (‘Coments. Ao CPC’, Forense, vol. I, 2° ed., n°.79). Isto, de regra. Sérios problemas processuais surgem, entretanto, quando a sentença de mérito ‘tiver por pressuposto o julgamento de questão de estado, requerida como declaração incidente’, pois pelo Código será o processo, nesse caso suspenso por prazo não excedente a um ano (art. 265, IV, c; art. 265, §5°). Findo o prazo, ‘o juiz mandará prosseguir no processo’, ou seja, na hipótese de declaração incidental relativa à questão de estado, o juiz determinará seja retomada a apreciação da lide ’principal’ (note-se que, excepcionalmente, a ação declaratória incidental tramitará então em autos apartados, pois neste caso, e apenas neste, haverá não só uma ação incidental como também um processo incidental)”

Não diverge a orientação pretoriana do tribunal de Justiça de Santa Catarina: “ação possessória – Declaratória incidental – recurso cabível – Apelação. ‘Cabe recurso de apelação da decisão proferida em ação declaratória incidental, visto tratar-se de sentença que julga o mérito da causa. Recurso extraordinário conhecido e provido’. In RE 89.089 – Ceará, D.J., 12/12/80, pág. 10.581. é ela ajuizada nos autos da própria ação principal e deverá ser julgada na mesma sentença, como questão prejudicial àquela. Recurso provido” (DJE – n° 6.135 de 28/09/82, pág. 8, Rel. Des. Reynaldo Rodrigues Alves).

Como ensina Moacyr Amaral Santos (in Com. ao CPC, vol. IV, pág. 478), “... num sentido restrito, mais técnico, questões prejudiciais são pontos de direito material controvertidos, que, além de serem antecedentes lógicos da sentença, poderiam constituir objeto de uma ação autônoma”.

Neste caso, deve-se ainda interpretar harmonicamente os arts. 469, III e 470, ambos do CPC, pois, via de regra, a apreciação de questão prejudicial decidida incidentalmente no processo não faz coisa julgada, desde que a parte não o requeira expressamente.

Porém, em nenhuma hipótese é de se permitir, que o juiz preste a tutela jurisdicional sem a aprovação do interessado, ou seja, no caso, declarar a nulidade ex officio, em virtude do disposto no art. 2° de nossa Lei Adjetiva, retirada do velho brocardo: - nex procedat judex ex offício -. Se assim proceder, estará proferindo decisum ultra petita, passível portanto de nulidade.

 

V – ANÁLISE DE ARESTO PROFERIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Torna-se aconselhável uma análise do v. aresto proferido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n° 65.164, do Paraná, em que foi Relator o Sr. Ministro Amaral Santos, publicado na R. T. J. vol. 56, pág. 431 usque 440, para não se concluir e aplicar erroneamente a matéria aqui ventilada.

O ponto do aresto que nos interessa está particularizado no n° 1 da ementa, assim redigida: “Não constitui julgamento ultra petita decretar a nulidade, em ação de reintegração de posse, para dar pela sua procedência, de atos nos quais a parte calca a sua alegada posse. Aplicação do princípio constante no parágrafo único do art. 287 do Cód. Proc. Civil...”. Ab initio, tem-se a impressão que o enunciado na ementa vai de encontro à tese aqui defendida; mas na verdade, assim não, pois o referido decisum foi prolatado quando vigia o Código de 1939, in casu, com repercussão totalmente diversas, tendo em vista o seu art. 287, parágrafo único, estar redigido da seguinte maneira: “considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da sentença”.

Com bem se depreende do corpo do aresto, “... a declaração de nulidade dos atos argüidos para chegar a essa conclusão, constitui motivação da decisão...”. “...mas, com isso, não decidiu além, dos pedidos, e sim apenas houve por bem estabelecer as premissas necessárias à conclusão...”.

Ora, se no caso sub examen (uma possessória discutida com base no domínio), quando ainda em vigor o Código de Processo Civil de 1939 (decisão proferida em 1970), incursionou o magistrado pelo campo da análise dos títulos para fundamentar a possessória, e, desta feita, averiguando a nulidade de um deles, realmente fazia-se mister, que ele, além de julgar a posse, declarasse a invalidação de um dos títulos, sem que estivesse proferindo decisão ultra petita (art. 287, parágrafo único).

Porém, o mesmo princípio e ensinamento não se aplicam mais desde o advento do novo Cód. de Proc. Civil, no que tange à parte dispositiva da sentença, em face do já mencionado art. 469, isto é, os motivos da sentença (fundamentação) não fazerem coisa julgada (material). Para o Ilustre Moacyr Amaral Santos (op. cit., pág. 476), “A matéria comportava controvérsia e profundas indagações no regime do Código de 1939 ...”. “... Queria dizer que se consideravam com efeito de coisa julgada as decisões, no desenvolvimento da análise das questões suscitadas, e que se pressupunha necessariamente na conclusão ...”. E, adiante, continua o doutrinador: “O Código vigente cortou definitivamente a controvérsia, excluindo da eficácia da coisa julgada as questões resolvidas na fundamentação, até mesmo as chamadas questões prejudiciais (art. 469)”.

Por estes motivos, não tem mais aplicação na sistemática processual moderna o entendimento defendido pela insigne Primeira Turma do Pretório Excelso, mas que, vale ressalvar, para a época de sua prolação, era absolutamente correto.

 

VI – A COISA JULGADA EM AÇÃO POSSESSÓRIA FULCRADA NA EXCEPTIO DOMINII

Já vimos anteriormente que não tem qualquer eficácia o reconhecimento, na fundamentação da sentença possessória, de nulidade ou anulabilidade do título, inexistindo, assim, res judicata.

Questão outra é com relação à ação reivindicatória. Pode a parte sucumbente, em ação possessória, sendo também titular de domínio, após o trânsito em julgado, intentar ação reivindicatória, sem com isso ofender a coisa julgada? – Em regra, é possível a propositura da reivindicatória após o trânsito em julgado da possessória, pois o bem tutelado no primeiro caso é a posse (situação meramente fáctica), enquanto que na outra o objetivo é a proteção da propriedade (direito real).

Porém, casos ocorrem em que se decide a posse em razão do domínio (art. 505, 2° parte do CC), o que acarreta, após o trânsito em julgado do decisum, a impossibilidade da propositura de reivindicatória, em face de já ter o magistrado se manifestado a respeito do direito de propriedade. Caso contrário, viria a ferir o princípio da coisa julgada. Neste diapasão podemos citar TJSC – DJE 5.998, de 11/03/82, pág. 10, Rel. Des. Nelson Konrad e DJE 6.155 de 27/10/82, pág. 6, Rel. Des. Nauro Colaço.

Note-se que, neste caso, apenas dá-se a coisa julgada para efeitos de reivindicação, e não para qualquer outra matéria versada, por ter sido a lide discutida com base no domínio. Assim também entendem Paulo T. Haedchen e Rêmolo Letteriello (in Ação Reivindicatória, pág.113,1980).

 

VII – Conclusão

À guisa de conclusão, poder-se-ia dizer sumariamente que a decisão que reconhece a exceptio dominii em favor de uma das partes: a) não faz coisa julgada no sentido material, no que pertine à nulidade de títulos, salvo se a possessória foi cumulada com anulação de ato jurídico (com procedimento ordinário)ou preexistiu declaratória incidental; b) obsta o juiz de declarar a nulidade do documento ex officio, sob pena de julgar ultra petita; c) impossibilita o ajuizamento de ação reivindicatória havendo coisa julgada material em possessória, desde que fundada a lide no domínio.